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Post: 30 dias sem álcool

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O que acontece com a cabeça, com o corpo – e com a vida – quando, subitamente, a gente para de beber.

Lembro como a bebida se tornou um hábito na minha adolescência. Estávamos na oitava série e o ano letivo ia se encerrando. Movidos pela nostalgia antecipada, eu e meus dois amigos mais próximos começamos a matar aulas para frequentar o bar moderninho que dava vista para o mercado municipal da Penha. O garçom nos vendia cerveja às 3 ou 4 da tarde, mas punha uma garrafa de guaraná em cima do balcão.

Tínhamos 14 anos, nem sombra de buço sobre os lábios e ainda usávamos uniformes escolares. Todos fumávamos, naturalmente. Os anos 70 na zona leste de São Paulo podiam ser tão permissivos quanto os anos 60 nos escritórios publicitários de Manhattan, senão mais.

Daí para beber com regularidade foi um pulo. Aos 17 anos, no colégio, íamos ao bar quase diariamente. Uma cervejinha antes da aula, uma pinguinha com limão depois. Às vezes, alguém levava um cantil com conhaque para dentro da escola, para espantar o frio. Era comum chegar em casa bêbado, nos fins de semana, depois dos ensaios do grupo de teatro e dos arremedos de boemia nos bares do centro da cidade.

Minha mãe, que não bebia nem champanhe na noite de Ano Novo, mal conseguia disfarçar o pânico. Temia que eu virasse um pé de cana. Não virei, mas um dos amigos daquele bar da Penha, virou. Faz alguns anos, recebi um e-mail da mulher dele pedindo ajuda para lidar com o alcoolismo do sujeito. Não sei se adiantou.

A rotina de um adulto que bebe contém álcool, mas em proporções menores do que a rotina das garotas de 20 anos preocupadas com a pele contém água.

O sujeito toma uma latinha de cerveja à noite, quando chega em casa depois do trabalho. Às vezes duas. Outras vezes, racha uma garrafa de vinho, se houver companhia. Se for ao bar com os amigos assistir a um jogo, bebe mais. Nos fins de semana, começa a tomar no almoço (quem bebe água durante um churrasco, ou acompanhando a feijoada?), e às vezes continua na festa ou na balada, noite adentro. As manhãs de ressaca são frequentes.

Minha rotina era mais ou menos essa até um mês atrás, quando me convidaram para um retiro espiritual no interior de Goiás. Como o pessoal não bebia, não bebi. Não doeu nada. Ao sair de lá, depois de cinco dias, resolvi ficar abstêmio mais um tempo, por conta própria.

Nos últimos anos, vira e mexe eu considerava dar um tempo com a bebida, fazer uma espécie de detox. Depois dos 50 anos a gente começa a pensar essas coisas. Aproveitei a parada acidental e comecei. Ontem, completaram-se 30 dias que bebi pela última vez. São 30 dias sem álcool, pela primeira desde a adolescência, que eu me lembre.

Nas últimas semanas, eu me levanto e olho no espelho todos os dias, esperando mudanças espetaculares. Quem sabe eu fique mais bonito, ou pareça mais jovem, ou pelo menos consiga uma cara mais saudável. Até agora nada nisso aconteceu, mas eu mantenho a esperança.

Perdi dois quilos na primeira semana, mas ainda bem que eles voltaram. Com 1,77 de altura e 67 quilos de peso, minha magreza é mais que suficiente. Uma moça gentil disse que a minha pele tem estado mais bonita nos últimos dias, mas acho que ela está tentando me estimular. Também digo coisas positivas para os gordinhos em regime.

Objetivamente, minha vida mudou pouco nos últimos 30 dias. Viver sem ressacas, por exemplo, é uma novidade. Fico no bar com os amigos, tomando suco ou cerveja sem álcool, e no dia seguinte estou pronto para correr ou escrever às 7 horas da manhã. Minhas manhãs ficaram mais longas e produtivas. A sensação é ótima.

Alguém me disse que junto com a ressaca eu perco também o prazer das festas e dos encontros, mas não é bem assim. Tenho feito coisas bem divertidas sem um pingo de álcool na cachola. Inclusive comer feijoada. A euforia de quem está sóbrio é menor, mas ainda é bom estar no meio do bando, falando alto e rindo. Não fui dançar de cara limpa, porém. Estou curioso para ver se funciona. Seria uma pena se eu não conseguisse entrar no clima da música sem álcool.

Noto que tenho me alimentado melhor – sobretudo de manhã – e que aumentei o consumo de café e doces. Deve ser alguma forma psicológica de compensação. As dores de estômago associadas ao consumo de álcool sumiram, assim como as quedas de resistência. Adeus, infecções oportunistas. Tenho dormido mais e com mais facilidade, mas aí pode estar intervindo outro fator: comecei a fazer aulas de meditação há duas semanas e tento meditar com regularidade, sobretudo antes de dormir. Quando a gente começa a fazer uma coisa saudável, outras se seguem.

Seguramente estou gastando menos. As contas de bares e restaurantes despencaram, e, sem trazer cerveja e vinho, as idas ao supermercado também ficaram mais baratas. Não é má notícia nos dias que correm.

Onde eu percebo mais melhora é na minha satisfação pessoal. Há um grande prazer no ato de mudar a própria vida, ainda que seja de leve. Ainda que seja em algo secundário. Quando eu parei de fumar, muitos anos atrás, foi assim. A sensação de estar no comando de mim mesmo, de ser capaz de controlar impulsos, de trocar um prazer imediato por outro, mais sutil e prolongado. É muito bom esse sentimento.

Agora que não tenho bebido, sinto que o ato de beber constantemente talvez seja uma imposição social desnecessária. Reproduzimos docilmente um estilo de vida associado pela publicidade à rebeldia, mas pago com comportados cartões de crédito. Experimentamos com o álcool na juventude depois o incorporamos em larga escala na maturidade, talvez na tentativa de perpetuar aquelas primeiras sensações. Não sei se precisamos de todo esse aditivo para estar contentes. Provavelmente não.

Os bilionários que fabricam cerveja levam vidas de asceta. Os empresários em cujos bares enchemos a cara a preço de ouro frequentemente não bebem. Os atletas milionários que batem a mão no peito para se dizer cervejeiros provavelmente não chegam perto de bebida. Todos eles nos vendem um estilo de vida que eles mesmos não compram. Por quê?

Uma sociedade em que os ricos se preservam enquanto o resto de nós comete excessos e se gasta parece uma repetição alienada da revolução industrial do século XVIII, e talvez seja.

Tem sido fácil não beber durante este mês? Em geral, sim. Às vezes, não. Ontem, fui almoçar num bistrô e havia algumas pessoas bebendo. Deu vontade de combater o calorão do Rio de Janeiro com uma cervejinha. Um cara estava no canto do salão tomando os últimos goles de uma taça de vinho branco quando o garçom chegou com um café e a garrafa de licor. A visão do ritual completo também mexeu comigo.

O vinho, além de ser uma coisa bonita, está associado concretamente ao prazer da comida e do sexo. Vai ser duro abrir mão dele. Mas posso me lembrar que a última vez que tomei meia garrafa de Chardonnay, pouco mais de um mês atrás, me irritei com uma pessoa de quem gosto muito. Discutimos e passei vários dias com sentimentos ruins. O álcool tem essa capacidade. Ele não estimula apenas a nossa emotividade e a nossa libido. Estimula também a agressividade. Dessa parte eu não sinto falta.

Nos próximos dias, pretendo ficar assim, careta. Se continuar me sentindo bem, prossigo. Se algo mudar, retomo – mas não da mesma maneira.

Me ocorreu por esses dias, numa espécie de insight, que não é necessário manter os mesmos hábitos a vida inteira. Talvez seja possível mudar, inventar, tentar. Deixar finalmente para trás o garoto nostálgico que começou a beber no bar moderninho da Penha em 1974 e achar outras formas de lidar com os sentimentos do homem em que ele se transformou. Com álcool eu já sei como é a vida. Sem ele, como será?

IVAN MARTINS

Site – ÉPOCA 

 

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