Todas as cidades do mundo que obtiveram êxito na extinção de locais similares à Cracolândia paulistana adotaram políticas de tolerância zero com a perturbação da ordem pública.
A aglomeração de usuários e traficantes em espaços públicos para consumir e vender drogas ilícitas é um dos mais graves problemas que afetam centros urbanos ao redor do mundo. O fenômeno conhecido como “cena aberta de uso de drogas” — originário do inglês, open drugs scenes — não somente é um enorme desafio social e de saúde, mas principalmente confronta o Estado na sua função mais básica e primordial: a garantia da segurança e da ordem pública.
As cenas abertas de drogas variam de tamanho, visibilidade e localização. Algumas cidades têm cenas menores e dispersas, enquanto outras se deparam com cenas grandes e concentradas. A cidade de São Paulo luta há mais de 20 anos com uma cena aberta concentrada — conhecida como Cracolândia — e cenas abertas dispersas, espalhadas em alguns pontos da cidade. Uma das características das cenas abertas concentradas é sua capacidade de atrair usuários e dependentes de outros locais. A nossa cena aberta não é diferente: segundo o Datafolha, apenas 38% dos frequentadores são nativos da cidade. Os outros 62% vem de outras cidades, estados e até mesmo países — como imigrantes da Nigéria ou turistas da África do Sul já encontrados no local. Se os impactos das cenas abertas se limitassem ao “turismo da droga”, os problemas seriam menos complexos. Contudo, a existência dessas áreas tem consequências abrangentes e profundas.
Do ponto de vista da segurança urbana, as características de um determinado ambiente têm o poder de facilitar ou inibir a prática de crimes. Os percursores dessa metodologia, estudiosos da Escola de Chicago, demonstraram que um ambiente de desordem e permissividade é um polo de atração ou terreno fértil para expansão de atividades criminosas. Não sem efeito, a desordem causada pela presença da cena paulistana se manifesta de diversas formas. Dentre elas, a existência de uma feira de drogas a partir do controle de áreas públicas por organizações criminosas do tráfico e a prática de crimes (roubos e furtos, principalmente) a ela vinculados. Não se pode olvidar, igualmente, do descarte de lixo a céu aberto, do impacto negativo no comércio local, da prostituição e da pedofilia, da sensação de insegurança e da proliferação de doenças. Além dos traficantes e dependentes, o ambiente recebe moradores de rua, compradores de drogas e visitantes curiosos, servindo de abrigo a todos aqueles que enxergam o território como uma terra arrasada onde tudo é permitido.
O avanço do crack no Brasil expõe um cenário no qual a dissolução da Cracolândia deve ser um imperativo de saúde, de desenvolvimento social e de segurança pública. De acordo com o mapeamento feito em 2016 pelo Observatório do Crack, a droga está presente em pelo menos 78,5% dos municípios brasileiros, sendo um problema grave em 20,7% deles. A situação fica ainda mais preocupante quando analisamos a evolução do consumo da droga nos últimos anos, principalmente nas capitais do país, onde o uso do crack cresceu muito devido ao seu baixo preço e alto poder de adição. Um estudo da Fundação Oswaldo Cruz em parceria com a universidade americana de Princeton revela que os usuários de crack correspondem a 35% dos consumidores de drogas ilícitas nas capitais brasileiras. A combinação entre a epidemia de crack nas grandes cidades e a existência de cenas abertas de uso e venda de drogas é explosiva. No contexto nacional, onde violência e criminalidade estão intimamente ligadas ao tráfico de drogas, combater a existência desse fenômeno se torna uma alta prioridade de segurança pública.
O problema das cenas abertas de drogas não é exclusivo de São Paulo. Muitas cidades ao redor do mundo travaram longas batalhas, passando por anos de maturação até implementarem estratégias vitoriosas. Esse aprendizado não pode ser ignorado. Qualquer política genuinamente interessada em obter bons resultados deve fazer uma análise detalhada dos casos de sucesso.
Todos os locais que obtiveram êxito na extinção das cenas abertas adotaram políticas de tolerância zero com a perturbação da ordem pública. Mesmo em locais onde a descriminalização do uso de drogas foi institucionalizada — como Lisboa — ou cidades conhecidas por suas políticas lenientes com drogas leves — como Amsterdã — foram adotadas políticas restritivas quanto à ocupação coletiva e ao comportamento individual por parte de usuários em espaços públicos.
O combate às cenas abertas não pode e não deve acontecer em uma única esfera. As cidades que obtiveram sucesso chegaram a um entendimento que o problema é multifacetado e multidisciplinar. Um estudo coordenado pelo BMC Public Health, um centro de pesquisa norueguês, sobre as estratégias adotadas em cinco cidades europeias — Frankfurt, Viena, Amsterdã, Lisboa e Zurique — identificou um total de 22 ações de combate às cenas abertas, nove das quais comuns a todas as cidades. Os governos europeus entenderam que não lidavam somente com um problema de saúde ou de segurança. Por isso, formularam uma ação integrada e coordenada, sem privilegiar nenhuma das áreas envolvidas. Ademais, chegou-se a um entendimento de que políticas assistenciais e de apoio nas áreas sociais e de saúde não significavam leniência na área de segurança. Por essa razão, restrições ao comportamento e táticas de dispersão compulsória de usuários estiveram presentes em todas as cidades.
O programa Redenção da Prefeitura de São Paulo incorporou várias dessas estratégias de sucesso, dentre as quais podemos citar as equipes de abordagem de saúde e social, a criação de abrigos para acolhimento de dependentes e um sistema de coordenação entre os diversos níveis de governo, além da busca por alinhamento político e social com a sociedade civil. Ao todo, 275 756 atendimentos de dependentes já foram realizados em quatro meses. No campo da segurança, a ação integrada entre a Polícia Militar, Polícia Civil e Guarda Civil Metropolitana está focada no combate ao tráfico de drogas, prevenção da desordem pública e apoio às ações de zeladoria, assistência social e saúde.
O caminho é longo e requer perseverança, apoio da sociedade e constante aperfeiçoamento, além de coragem. A título de comparação, a primeira cena de drogas a céu aberto, em Zurique, apareceu em 1980, migrando para diferentes locais na cidade até sua completa extinção somente em 1995. São Paulo tem avançado desde quando enfrentamos a zona franca de venda de drogas na Cracolândia. Como Zurique e outros lugares do mundo que enfrentaram o problema de frente, não recuaremos.
Por José Roberto Rodrigues de Oliveira* e Heni Ozi Cukier**
*José Roberto Rodrigues de Oliveira é secretário de Segurança Urbana de São Paulo, bacharel em direito e professor de Política Municipal de Segurança da FAAP.
**Heni Ozi Cukier, é secretário-adjunto de Segurança Urbana de São Paulo, cientista político e professor de relações internacionais da ESPM.
Fonte: Veja