O isolamento social imposto pela pandemia de coronavírus tem provocado o abuso do álcool e de outras drogas, o que levou a OMS (Organização Mundial de Saúde) a recomendar que os países limitem a venda de bebida alcoólica.
No Brasil, exceto pelo fechamento de bares, não há políticas de restrição de vendas durante a pandemia, o que pode tornar o quadro ainda mais preocupante, segundo estudo publicado na revista Alcohol and Drug Review.
O trabalho reuniu pesquisadores de Brasil, Canadá, Estados Unidos e África do Sul, e de órgãos como a OMS.
No Brasil, em vários estados os bares foram fechados, mas os que vendem comida e bebida alcoólica por entrega podem permanecer abertos.
“Os bares estão fechados, então as vendas nesses locais diminuíram, mas as pessoas estão bebendo mais em casa”, diz o psiquiatra André Malbergier, professor do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP.
Segundo ele, as pessoas tentam justificar o aumento no consumo pelo inusitado da situação gerada pela pandemia. “Elas acham que estão vivendo uma coisa anômala e que podem compensar o mal-estar com coisas que dão prazer, principalmente comida, bebidas e drogas.”
O psiquiatra lembra que estudos apontaram o mesmo fenômeno após tragédias anteriores, como queda das Torres Gêmeas e o furacão Katrina, ambos nos Estados Unidos.
“Numa tragédia enorme, é como se fosse justificável lidar com as emoções através de álcool e drogas.”
Outro fato comum, segundo ele, são os dependentes abandonarem tratamentos nesses momentos. “São pessoas com uma motivação flutuante. No momento em que acontece alguma coisa diferente, elas dizem: ‘Não, agora eu vou deixar para quando tudo isso passar.”
De acordo com a psiquiatra Carmita Abdo, secretária da AMB (Associação Médica Brasileira), essa situação de insegurança, de trabalho em casa e de mudança de estilos de vida tem levado sim a um aumento das recaídas.
“Depois do primeiro gole ou uso de qualquer outra droga, a gente sabe que se perdeu todo um trabalho. As pessoas dizem: ‘É só hoje, estou que não me aguento mais’. Aí passou daquela linha tênue entre estar limpo e não estar mais.”
É o caso de Fernando, 47. Sóbrio havia um ano, ele recaiu na bebida durante uma live com amigos, há 15 dias. Estava sozinho em casa, os amigos na tela bebendo e ele não resistiu.
“Tinha ficado com um litro de uísque 12 anos em casa. Sempre encarei como desafio ele estar ali olhando para mim e eu dizendo não. Mas dessa vez não aguentei.”
Não bastassem os movimentos internos de cada um, no Brasil, tem sido frequentes os descontos em aplicativos de vendas de bebidas e artistas fazendo lives [apresentações virtuais] patrocinadas por fabricantes de cerveja.
Recentemente, o Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) notificou a Ambev, por “potencial estímulo ao consumo irresponsável” de álcool em live do cantor Gusttavo Lima patrocinada pela fabricante.
Para os especialistas, se já estava complicado resistir à vontade de tomar uns drinques a mais por causa do isolamento, dada a ansiedade que a falta de contato social e o tédio podem trazer, a tentação parece ainda maior quando celebridades entornam o copo.
O psiquiatra Arthur Guerra de Andrade, professor associado de psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP, diz que esse tipo de conteúdo é um risco não só para jovens que podem ter percepções distorcidas do álcool, mas também pode servir de gatilho de recaída entre alcoolistas.
“Alguns estudos mostraram que o comportamento de beber solitário está associado ao uso nocivo de álcool e é um hábito comum entre alcoolistas. De certa forma, as lives podem estimular esse tipo de comportamento, principalmente quando mostram influenciadores bebendo de maneira excessiva”, explica.
Para ele, o isolamento social pode ter impactos psicológicos negativos a curto e longo prazo, afetando não apenas quem sofre com a dependência. Pessoas com histórico de transtornos mentais, ou em tratamento, por exemplo, estão mais vulneráveis.
No caso dos dependentes doo álcool, particularmente, o problema aumenta com o afastamento de grupos de apoio e da convivência, e com as mudanças na rotina.
“É importante lembrar que a dependência é uma doença crônica, assim como diabetes, hipertensão ou asma, com momentos de melhora e piora dos sintomas.”
Arthur Guerra diz que é importante que aqueles em tratamento para o transtorno da dependência do álcool tenham “cuidado redobrado”, e permaneçam engajados no tratamento.
Além disso, ele ressalta o papel de familiares e amigos, que podem apoiar a continuidade do tratamento, bem como identificar e ajudar em possíveis recaídas.
“O tratamento da dependência é um processo delicado e contínuo e, muitas vezes acontecem recaídas. O paciente não deve se sentir envergonhado ou fracassado”, avalia. “É essencial perceber a recaída como um momento de aprender sobre as dificuldades do indivíduo, avaliar a presença de fatores estressores e reavaliar as estratégias terapêuticas”.