No turbilhão do abuso de bebidas etílicas, uma legião de familiares vira presa de enfermidade que dilacera emoções e também exige tratamento
“Tinha que tomar primeiro um copo de álcool puro e tomava chorando, porque eu não queria mais. Vomitava sangue pelo nariz”. O depoimento é de um administrador que passou 20 de seus 43 anos de vida preso ao álcool. Enfrentar a si mesmo para admitir que é um alcoólatra talvez seja a maior provação de quem perdeu a liberdade para a bebida. Não precisa mais beber muito. Basta beber uma. E uma se faz necessária para começar o dia, para acordar, para dormir, para ter coragem, para ter vontade. O corpo passa a ser engrenagem movida a álcool, um verdadeiro combustível da vida. Um misto de sentimentos – vergonha, medo, frustração consigo mesmo – atropela qualquer decisão que ameace se tornar concreta no tocante a parar de vez. No turbilhão do abuso, os que estão atados ao álcool carregam consigo uma legião de familiares, vítimas de uma doença silenciosa: a codependência.
É carga grande demais. É dor forte demais, que dilacera emoções e o físico. No ponto mais crítico, bastam algumas horas sem beber para os efeitos ficarem ainda mais visíveis. Uma tremedeira intensa dá a impressão de que o corpo em breve não mais se sustentará. É preciso apenas uma para acabar com o tremor. Olhares vazios pedem socorro, mas o corpo não reage. E de uma em uma, lá se vão várias doses, sem que se perceba nem mesmo o total do dia. No somatório das ilusões, o resultado é sempre negativo, com a corda arrebentando, muitas vezes, para o lado de quem também é frágil e tão doente quanto quem bebe: os entes mais próximos, que entram numa luta quase sempre em via de mão única para salvar aqueles que amam.
As estatísticas mostram que a codependência é um problema com ordem de grandeza de muitas casas decimais. Considerando uma população de pelo menos 304 mil pessoas abusadoras ou dependentes de álcool em Belo Horizonte, segundo a pesquisa Conhecer e Cuidar, feita pelo Centro Regional de Referência (CRR) em Drogas da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), os codependentes ultrapassam os 600 mil, apenas na capital mineira.
Considerando os dados do 3° Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira, divulgado recentemente pela Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz), pode-se inferir que a escala da codependência alcança dimensões tão gigantescas quanto o próprio território nacional. Segundo o levantamento, mais da metade dos brasileiros entre 12 e 65 anos declara ter consumido bebida alcoólica alguma vez na vida. Cerca de 46 milhões (30,1%) informaram ter consumido pelo menos uma dose nos 30 dias anteriores à pesquisa e aproximadamente 2,3 milhões de pessoas (1,5% desse grupo etário) apresentaram critérios para dependência de álcool nos 12 meses que antecederam a pesquisa. Para complicar, a substância aparece associada a outras, como o cigarro, drogas ilícitas ou medicamentos sem prescrição, em todas independentemente do nível de instrução de quem a consome.
Situação que adoece famílias inteiras. “Lutei muito por ele, porque é um filho muito bom, mas, infelizmente, caiu nessa infelicidade. Eu avisava, mas ele negava a doença. Dizia que o dia que quisesse parar, pararia”, conta a manicure Zoraide Ribeiro Goulart, de 72 anos, sobre o metalúrgico Guilherme, de 44, que começou a beber aos 14. Na sala de casa, ela relembra a luta travada contra o álcool durante décadas. “Tinha só a TV na sala, mais nada. Não podia, porque ele estava pegando os objetos de casa para vender. Ficava tudo trancado. Nessa época, os irmãos, que já não conversavam mais com ele, pediram para pô-lo para fora. Mas sou mãe. Se eu não acolhesse, quem acolheria?”, pondera a moradora do Bairro Riacho das Pedras, em Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte.
No ano passado, o filho saiu de uma internação de nove meses em maio. No dia seguinte estava empregado e, desde então, está longe do álcool. “Meu maior sofrimento era não poder fazer nada. Ele saía para a rua e eu ficava com medo do que poderia ocorrer. Chorei muitas vezes. Hoje, choro de alegria.”
Laços quebrados surgem como verdadeiras provações, como na vida de Verônica (nome fictício), de 42. Casada há pouco mais de uma década, ela conseguiu manter o relacionamento, mas só depois de um intenso tratamento de si mesma. Descobriu poucos anos depois da união que o marido, filho e sobrinho de alcoólatras, se alterava quando bebia. Ele oscila entre momentos de admitir a doença e outros em que a nega veementemente. Os remédios para tratar problemas psiquiátricos já não fazem os efeitos esperados. O álcool e outra droga se tornaram a grande bengala. São quase 2 litros de cerveja por dia. “Já houve pausas, mas toda vez que ele volta a beber, aumenta a quantidade”, diz.
Nela, a silenciosa codependência se instalou. “O esperava voltar do trabalho sempre. Ele bebia todos os dias. Voltava do serviço com uma sacola de cerveja. Sábado, dormia o dia inteiro e eu ficava em casa, na TV, deprimida”, conta. Problemas no organismo, como falta de apetite, também se manifestaram. O psiquiatra Guilherme Rolim Freire Figueiredo, titular da Associação Mineira de Psiquiatria, coordenador no Instituto Raul Soares (Rede Fhemig) e sócio da Clínica Mangabeiras, destaca que a codependência pode ocorrer em qualquer patologia, mas, no alcoolismo, ela é mais grave ainda, porque a família adoece aos poucos.
“Não é algo que ocorre subitamente. A família vê essa deterioração gradativa e vai se esfacelando aos poucos. É muito difícil a pessoa sair dessa sozinha. Se não tiver apoio familiar e parentes dispostos a enfrentar isso, será pior. Se partir para o abandono ou cobrança agressiva, pode-se esperar o pior. E muitas vezes é o que ocorre”, afirma, referindo-se à possibilidade de suicídio entre os dependentes.
Reconhecer a codependência e buscar ajuda é questão de sobrevivência para quem tem ligações emocionais com alcoólatras. E para isso, uma saída é o apoio de grupos de voluntários ou particulares, que ajudam na reorganização das famílias. Outra questão a enfrentar é a violência, outra consequência do alcoolismo com resultados nefastos.
Menos vida, mais violência
Não se trata somente de um estado de alteração física ou psíquica devido ao teor etílico. No ponto máximo do alcoolismo, as consequências da bebida jogam com a própria vida. São várias as doenças associadas e os riscos potenciais, sendo o maior deles recaindo sobre a expectativa de vida. Um alcoólatra vive 20 anos a menos em relação à população em geral, aponta estudo epidemiológico citado pela Associação Mineira de Psiquiatria. Os efeitos da bebida consumida com exagero têm sua marca também nos números da violência e de acidentes. No Pronto-Socorro João XXIII, em Belo Horizonte, o álcool é causa primeira de muitos traumas que fazem da unidade referência na América Latina. Falta de políticas de pós-tratamento é crítica de quem luta para continuar sóbrio.
Dados do 3° Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira, da Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz), mostram que a forma mais frequente de violência reportada tanto sob o efeito de álcool quanto sob o de drogas ilícitas foi ter discutido com alguém (2,9% e 0,4% para álcool e drogas ilícitas, respetivamente). Das cerca de 4,4 milhões de pessoas que reportaram ter discutido com alguém sob efeito de álcool nos 12 meses anteriores à entrevista, 2,9 milhões eram homens e 1,5 milhão, mulheres.
A prevalência de ter reportado que “destruiu ou quebrou algo que não era seu” sob efeito de álcool também foi estaticamente significativa e maior entre homens do que entre mulheres (1,1% e 0,3%, respectivamente). O estudo, publicado recentemente, teve parceria de várias outras instituições, como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Instituto Nacional de Câncer (Inca) e a Universidade de Princeton, nos Estados Unidos.
O levantamento destaca a disparidade flagrante entre os eventos associados ao álcool e ao conjunto de substâncias ilícitas. A explicação, pelo menos hipotética, vem de um conjunto de diferenças. “O álcool é, de longe, a substância mais disponível e de maior aceitabilidade social, devido ao seu caráter lícito, portanto, sua presença bastante mais frequente em situações variadas de conflito, de gravidade crescente (discussão, destruição de patrimônio e agressão contra a pessoa) é inteiramente plausível”, afirma.
“Finalmente, existe uma dimensão farmacológica: o álcool tem um efeito inibidor seletivo (a depender da dose ingerida) sobre circuitos neuronais associados à função de ‘censura’ e ‘autocontrole’, portanto, a inibição da inibição favoreceria a emergência de comportamentos habitualmente suprimidos, dentre eles a violência.”Ainda de acordo com os dados, aproximadamente 1,3% da população brasileira de 12 a 65 anos disse ter se machucado sob efeito de álcool e 0,15% quando havia consumido drogas nos 12 meses anteriores à coleta das informações.
Em outra abordagem, 1,3% dos integrantes desse grupo etário relatou ter sido vítima de alguma situação de violência na qual o agressor havia ingerido bebida alcoólica, 0,75% se deparou com agressor sob efeito de alguma droga e 0,72% com ele sob efeito de álcool e drogas.No João XXIII, esses números se traduzem na rotina de atendimentos pesados.
A cirurgiã geral e do trauma Daniela Rocha Fóscolo, que atende no setor de politraumatizados, conta que os casos variam conforme os dias da semana. Se há algum evento na cidade, o álcool é pontapé para agressões físicas e facadas. Nos fins de semana, principalmente à noite, está relacionado aos acidentes de trânsito. Em jogos de futebol, a bebida é combustível para agressões interpessoais, que também chamam a atenção durante o carnaval e eventos de rua, ao lado das quedas.
“Os acidentes de carro ocorrem com muita frequência no fim de semana. São eventos de maior complexidade, em que os pacientes ficam em estado mais grave. São comuns os traumatismos cranianos e traumas de múltiplos órgãos, como fraturas de ossos, pernas e braços”, afirma a médica. Além da consequência em si, o álcool leva outro problema para a equipe médica: o exame físico inicial.
O paciente não responde adequadamente, está sonolento e confuso e, em estágio de alcoolemia avançado, fica mais agressivo, prejudicando a relação médico-paciente.“Não só a avaliação inicial é mais complicada, como o próprio prosseguimento desse doente. Eles têm a saúde mais frágil, disfunções orgânicas e trazem junto com o trauma condições prévias que também devem ser abordadas, como pancreatite e doenças no fígado, sendo necessária a intervenção de outras especialidades”, relata.
Apoio para combater a codependência
Para lidar com a doença dos entes próximos aos alcoólatras, grupos de voluntários ou particulares traçam estratégias de cura e prevenção. A reorganização das famílias é preocupação de um movimento comunitário que nasceu da reunião de parentes de pessoas com comportamento associado ao uso de álcool e outras drogas para dar a elas um norte. No Amor-Exigente, voluntários apresentam a direção sobre como se organizar para confrontar esse comportamento e exigir que ele cesse. “A estabilidade da família depende da lealdade e da cooperação entre seus membros”, afirma o coordenador Regional em BH do Amor-Exigente, João Francisco de Souza Duarte, psicólogo especialista em dependência química.
Há também um trabalho de prevenção, voltado para que familiares – crianças, adolescentes, adultos ou idosos – sem o problema instalado em casa aprendam a se proteger dos excessos, e feito também em escolas, instituições e comunidades. A modalidade infantil, o Amor-Exigentinho, trabalha a prevenção com crianças em idade pré-escolar e do ensino fundamental. BH tem cinco grupos funcionando em quatro bairros: Centro, Serra (Região Centro-Sul), Padre Eustáquio (Noroeste da capital) e Alto Barroca (Oeste). Em Minas, são nove regionais.
Assim como o doente alcoólico, o codependente também precisa de recuperação, que é complexa. “Há vários graus de adoecimento e as pessoas precisam de acompanhamento por um bom tempo, porque, eventualmente, tem suicida, pessoa que comete crimes e fica preso, o que provoca grande sofrimento e vai demandar não só apoio de grupos como o nosso, mas atendimento médico, atenção psicológica e terapia”, afirma João Francisco. “Mas o apoio do grupo é fundamental para ajustar a pessoa socialmente, ajudá-la a lidar com todas essas questões que sobrevieram depois dos graves problemas que o comportamento do alcoólatra trouxe para a família.”
Na casa de seu Geraldo (nome fictício, de 68 anos, internado há sete meses na comunidade terapêutica Luz Divina, em Conceição do Pará, no Centro-Oeste de Minas, a doença dele e dos familiares terminou em rompimento. Faltando dois meses para se “graduar”, nome dado a quem recebe alta, ainda não sabe para onde vai, uma vez que a família não o quer por perto. Com vários problemas de saúde decorrentes do uso do álcool e dificuldade para andar, enfrenta hoje outra dor: a de saber que fez sofrer mulher e filhos. “Se os tivesse ouvido, não estaria aqui, mas junto deles”.
Mulher de um alcoólatra, Verônica (nome fictício), de 42, venceu o problema no Amor-Exigente. Hoje, sai e não deixa de fazer seus programas nem espera mais. “O fardo já foi muito maior. Frequentei o Amor-Exigente. Tenho histórico com meu pai. Entendo hoje o que minha mãe viveu. Foi muito pesado, falei de separação 300 vezes, me sentia culpada, porque ele dizia coisas que me levavam a acreditar que eu tinha culpa realmente”, relata. “No Amor-Exigente aprendi que ninguém tem culpa de o seu ente estar nas drogas.”
Aos poucos, ela enxergou que a dependência não se resolveria na marra. “É uma doença. É como falar que a pessoa é diabética, é hipertensa. E eu não via assim. Achava que ele estava me fazendo mal. É uma situação difícil, séria, legítima, mas eu tinha que sair daquele lugar. Tive que olhar um pouco pra mim. Não podia ficar vítima dessa história.”
Verônica tem uma certeza: não será ela a mudar a cabeça do marido. “A gente se decepciona, se frustra. Reaprende a caminhar a partir de um novo jeito, novo lugar e novo olhar. Fui muito apaixonada por ele e o envolvimento mudou. Tenho amor, mas não sei como será o futuro, se estarei com ele ou não, porque me curei da codependência.”