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Post: Dependência química é a perda da liberdade de fazer escolhas

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A doença mental pode ser definida como a “perda da liberdade de escolhas”(1). Mas não aquelas cujo direito de exercê-las é garantido pela constituição federal. Tal perda está relacionada ao surgimento de fenômenos que se manifestam na mente humana para além da vontade da pessoa – tais como as alucinações, os delírios, as oscilações patológicas de humor e as atitudes compulsivas, impossibilitando que a vida mental do sujeito acometido por tais alterações possa exercer e se responsabilizar por seus atos com autonomia e liberdade.

A doença mental é o colapso da comunicação lógica, aquela, em que a possibilidade de estar errado, a necessidade de reformular, a mea culpa estão sempre presentes. Ao contrário, o funcionamento da doença mental não trabalha com hipóteses, tampouco investiga a realidade a partir de dúvidas ou questionamentos. Ele parte de comandos irracionais, os quais, parafraseando um poemamais-que-centenário(2), que permaneceu absolutamente atual, encontram-se enraizados na “matéria bruta” da “psicogenética”, a qual, em “desintegrações maravilhosas”, a partir da “alta luta do feixe de moléculas nervosas”, “delibera, e depois, quer e executa”, independentemente do contexto que o rodeia. Desse modo, faz parte da doença mental a presença de uma certeza de essência infalível – com graus variados de predomínio sobre a psique –, que suprime não só a comunicação, mas igualmente a subjetividade e a criatividade que tornavam possível a interlocução habitualmente esperada entre um indivíduo e o seu entorno sociocultural(3).

Retomando a ideia da loucura como a “perda da liberdade de escolhas”, é possível notar que o dependente químico não completamente é “louco”, tampouco completamente são: um ‘normal-quase-psicótico’ ou um ‘psicótico-quasenormal’, alguém com um pé em cada barco. Boa parte entende, ou é capaz de entender, a natureza da doença que o aflige, mas, pelo menos de início, apenas uma minoria é capaz de se responsabilizar pelos estragos que ela traz.

Nesse contexto, tomar a afirmativa “não quero parar de usar drogas” como uma verdade absoluta ou um exercício de direito inconteste, capaz de isentá-lo de qualquer tipo de abordagem terapêutica, pode ser tão negligente e danoso para o usuário de drogas – por desconsiderar a provável presença de um transtorno mental –, quanto seria definir aprioristicamente que todo o usuário é um doente passível de internação compulsória.

Mais uma vez, “anormalidade” não significa obrigatoriamente “patológico” – “o oposto do normal não é o doentio, é somente o anormal; o anormal pode sinalizar a doença, patologia, quando permite conceber um distúrbio funcional correspondente”(4).

Eis aí um campo de delicadeza altamente complexa, no qual estão enraizadas várias estruturas de conhecimento, destinadas ao entendimento e à compreensão do consumo de substâncias psicoativas pela humanidade, que de alguma forma, ao invés de competirem por protagonismo, precisam, juntas, compor o jardim da individualidade humana, considerando suas limitações e suas potencialidades, ora apostando, ora coibindo o florescimento de tendências, tendo sempre como parâmetro – e adubo – a dialética entre a pessoa funcionalmente comprometida e o seu entorno que precisa respeitá-la e acolhe-la, sem no entanto sofrer as consequências do seu adoecimento.

Nesse sentido, muitas vezes, as estratégias de tratamentos e os códigos de conduta contemporâneos relacionados ao uso de substâncias psicoativas – seja para o usuário de baixo risco, seja para o que apresenta algum tipo de problema relacionado ao consumo dessas –, buscam oferecer soluções capazes de enfraquecer atitudes involuntárias que comprometem a credibilidade dos seus atos de vontade, ao mesmo tempo em que valorizam as ações voluntárias capazes filtrar, moldar e amadurecer as primeiras.

No final, o que mais importa é que o dependente possa se assenhorar e assumir paulatinamente o seu processo de recuperação. E o instrumento para isso, agora sim, só pode ser obtido por intermédio do exercício da razão – e do patrimônio psíquico que emana deste –, ainda que no começo seja necessário reconhecer que ele não é páreo para o querer irracional do desejo de consumir.

Nesse sentido, Ulisses foi genial: se amarrou ao mastro para não deixar que o “querer (pseudo) racional” de ouvir as sereias atirasse o seu barco contra as rochas – mas não tirou a consciência da jogada, pois a reflexão final – “ainda bem que me amarrei” – somente ela seria capaz de fazer. Já Romeu e Julieta, assim como Tristão e Isolda, foram ingênuos: preferiram sedar, inebriar o funcionamento racional, ficando vedados da possiblidade de tomar decisões perante às adversidades da vida ou à necessidade de negociar com a realidade. Apostaram, apenas na ideia e no desejo de chegarem sãos e salvos no final. Só que o oposto aconteceu e o desejo sincero de superação se transformou em tragédia. No campo da dependência química, jornadas que não forem pautadas pelo senso de responsabilidade e de dever nunca terão final feliz.


(1) Sonenreich C, Bassitt W. O conceito de psicopatologia. São Paulo: Monole; 1979.
(2)Anjos A. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar; 1994.
(3)Fiks JP. Delírio – um novo conceito projetado em cinemas. São Paulo: Via Lettera Editora e Livraria; 2002.
(4)Sonenreich C, Kerr-Correa F. Escolhas do psiquiatra: saber e carisma. São Paulo: Manole; 1985.


Por Marcelo Ribeiro, Psiquiatra, Membro do Programa de Pós-graduação do Departamento de Psiquiatra da UNIFESP e presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de São Paulo (CONED). Artigo publicado anteriormente na edição n° 241 da RevistAE, em Outubro/2019.

 

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